18.5.13

Jacinta Passos, jornalista




A Resposta

     Jacinta Passos

 
 
            Há nove meses já que se encontra presa, em São Paulo, Elisa Branco, condenada a quatro anos e três meses de prisão. Por que foi condenada?
            No entender do juiz que condenou Elisa Branco, o fato de abrir uma faixa com os dizeres “Os soldados nossos filhos não irão para a Coreia”, e a distribuição de um boletim da Federação de Mulheres Paulistas sob o título “Ao coração das mães brasileiras“ significam: “a) fazer propaganda com boletins contra a estrutura e a segurança do Estado e a ordem social, ao regime jurídico da propriedade, da família e do trabalho, à organização e ao funcionamento dos serviços públicos, aos direitos e deveres das pessoas de direito público para com os indivíduos e reciprocamente; b) incitar diretamente o ódio entre as classes sociais ou instigá-las à luta pela violência.”
            O juiz que condenou Elisa Branco não pôde encontrar uma justificação para o seu crime nem mesmo nas leis de sua classe. Deve então ter pensado assim: _ A ordem é condenar. Mas se não houve crime, dentro da lei? Isto é o diabo. Ora, a lei. A lei é de matéria plástica, como os brinquedos e caixinhas que os americanos exportam para o Brasil, a lei é dócil em nossas mãos, pois pode ser amassada, distorcida, interpretada segundo nossos planos. E assim foi feito. E veio a condenação. Condenação baseada numa mentira e atirada à face do povo como um insulto.

            Este feito revolta qualquer pessoa honesta, mas não revolta somente. Faz pensar também: por que havia ordem de condenar Elisa Branco? É que sua condenação é uma parte apenas de um plano monstruoso de preparação guerreira do nosso povo. Aqueles que preparam a guerra – os imperialistas americanos e seus instrumentos, desde Truman até Getúlio e João Neves – sabem que não basta comprar armas e generais de traição. É preciso mais, é preciso ir amortecendo a resistência do povo: que ele se vá acostumando, aos poucos, com o inevitável da guerra, da morte, aos poucos, hipnotizado, inconsciente, sonâmbulo, até ao suicídio. _ Manifestações de massa contra a guerra? Contra a intervenção americana na Coreia? Nunca. Vamos fechar a boca do povo, dizer que a luta pela paz é manobra comunista,que só interessa aos comunistas, vamos separar os comunistas da massa de explorados, vamos fechar as organizações de massa que impedem nossos planos guerreiros.
            _ Ah, as mulheres, sobretudo. Como elas odeiam a guerra com ódio animal, na defesa dos filhos! É preciso fazer calar esta voz no nascedouro; se as mulheres se levantarem unidas contra a guerra, ai de nós! Serão uma força poderosa. Assim pensam os homens que têm os poderes nas mãos. Assim agem, preparam o terror contra uma manifestação feminina, patriótica e pacífica, prendem e condenam Elisa Branco. Agora ameaçam fechar a Federação de Mulheres do Brasil e a Associação Feminina do Distrito Federal. Ah! Senhores, lembrai-vos de Angelina e Zélia, das mulheres de Cruzeiro, de Aparecida em Tupã, das tecelãs do Pará. São nossas irmãs, sua luta é nossa luta e é a mesma de todas as mulheres simples do Brasil por uma vida melhor, por um mundo de paz, sem miséria e sem fome. Sabeis qual seja nossa resposta às vossas ameaças? Trabalhar mais e melhor. Ampliar o nosso trabalho, falar às mulheres de todos os bairros, na linguagem delas, sem diferença de cor ou crença ou ideias políticas, dizer da nossa luta por um mundo melhor, contra a exploração, por um pacto de paz que afaste o perigo da guerra. Organizar uma massa cada vez mais numerosa de mulheres que participem do Congresso de Julho, em São Paulo, e realizar o Congresso para largar o movimento feminino por todo o Brasil, como uma onda poderosa capaz de exigir as coisas simples e concretas de que precisamos: mais pão, mais saúde, mais escolas e alegria para a infância, garantia de paz e trabalho para toda a família brasileira.
 
___________________________________________________
            Artigo publicado no jornal Imprensa Popular (órgão do Partido Comunista Brasileiro), em 9 de Junho de 1951, p. 2. Corrigidos erros ou omissões de pontuação e grafia,  atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado no Brasil em 1995. 

                Este artigo protesta contra a prisão e condenação da costureira Elisa Branco, nascida em 1912, que, a 7 de setembro de 1950, durante comemoração do Dia da Independência, empunhou uma faixa em frente ao palanque das autoridades, protestando contra o apoio do Brasil aos Estados Unidos na Guerra da Coreia, e contra o possível envio de tropas brasileiras para esta guerra. Condenada pelo Tribunal Militar a 4 anos e 3 meses de prisão, Elisa viu formar-se em torno do seu caso um grande movimento popular, do qual os comunistas participaram intensamente. Em novo julgamento, ocorrido durante o ano de 1951, Elisa Branco foi absolvida. Em 1953, recebeu o Prêmio Stalin, em Moscou.
            O texto demonstra a profunda ligação de Jacinta Passos, à época, com o programa e as ideias do Partido Comunista Brasileiro, assim como sua incansável identificação com os movimentos femininos e feministas. Em carta de 20 de setembro de 1951 dirigida à cunhada Zélia Gattai, que se encontrava em Praga, Jacinta escreveu sobre o mesmo assunto: “Hoje à tarde foi absolvida E. Branco, no S. Tribunal, dois votos contra dois, e o juiz desempatou a favor. Vitória do movimento de massas para libertá-la.” (in Jacinta Passos, Coração Militante, p. 388).
 
____________________________________________
 
Agradeço ao engenheiro João Nascimento a localização e encaminhamento deste artigo de jornal.
Imagem: Elisa Branco quando recebia em Moscou o Premio Stalin, 1953. PROIN, Arquivo Público do Estado de São Paulo e Universidade de São Paulo. 

11.5.13

Jacinta Passos, mãe


 




A menina e a mãe
                                                                                             Janaína Amado*


Quando a menina pequena abre os olhos de manhã cedo, pergunta logo Cadê mamãe? Neste dia não tem resposta. Nunca mais terá resposta a essa pergunta. Mazi disfarça, diz que a mãe foi ali e volta já, mas o dia inteiro se passa e a mãe não volta. Irritada, inquieta, a menina não consegue brincar, chora, não tem apetite: Não quero comer esta porcaria!, joga o prato em cima de Mazi.

A menina percebe que alguma coisa está profundamente errada. Não sabe o que é, porém seu

corpo alerta indica o perigo a rondar. Precisa da mãe ali para protegê-la, defendê-la. Chama por ela, chora por ela, mas desta vez a mãe não está ali junto, sumiu. Muito confusamente a menina intui que o problema é a mãe, a mãe é o problema, mas não entende, e chora.

Quando o pai enfim volta para casa, a menina voa em cima dele. Pula em seu pescoço, ansiosa: Cadê mamãe? Ele a põe no chão. A menina percebe que o pai não olha para ela, o olho dele está saindo pela janela, longe. Parece muito cansado, o seu pai. Cadê mamãe, cadê mamãe?, insiste. A resposta chega como surra:

— Mamãe está doente. Vai precisar ficar no hospital.

Doente? Mas mãe não fica doente! Pela primeira vez, o pai sorri. "Fica, sim. Lembra quando ela sentiu aquela dor de garganta e teve de ficar na cama? Estava doente." Mamãe tá com dor de garganta? Não. Tá com dor de dente? Não. Com dor de olho? De nariz? Andando atrás do pai, a menina vai repetindo a mesma pergunta, com a troca da última palavra. Não estava nem na metade da sua lista de partes do corpo, quando o pai dá um berro: "Chega! Me deixa em paz!" tão súbito e alto e aterrador que a menina escorraçada dispara rumo à cozinha, vai chorar no colo de Mazi.

Nesta noite, ela consegue dormir só muito tarde, depois de Mazi cantar o Sapo Cururu várias vezes e seus olhinhos se fecharem de exaustão.

Sonha com a figura forte da mãe ao seu lado, as duas caminhando juntas pela rua clara de sol, uma brisa que vem do mar levantando os cabelos delas, a sua mãozinha protegida dentro da mão firme da mãe. Ela observa admirada aquela mãe tão bonita, alta, elegante, empinada. Ri pra ela, de pura satisfação. Com mamãe, eu não tenho medo de carro. Não tenho medo de cachorro. Nem medo de sumir na multidão. Nem medo de esquecer o caminho de casa. Mamãe sabe. Mamãe conhece todos os caminhos. Mas no sonho então a mãe se vira para ela, rosto sério, e diz:"Estou perdida. Não conheço mais os caminhos."

A partir daí a vida da menina vira confusão barafunda anarquia desarranjo, ela aos trambolhões de uma casa pra outra, o pai o tempo todo no trabalho ou no hospital, Mazi dando adeus e indo embora, um monte de gente estranha em volta, seu mundo de ponta-cabeça, todas as coisas, todas as pessoas fora de lugar, pesadelo.

A menina pergunta a cada hora Por que mamãe tá demorando tanto? Ninguém sabe lhe responder. "Como contar a uma menina pequena que sua mãe ficou doida?", pensam. Quando mamãe vai voltar?, insiste. Ninguém conhece a resposta.

À hora de dormir, no escuro, a menina passa devagar a ponta da fronha no rosto, enquanto pensa perguntas que não tem coragem de dirigir aos outros: Por que mamãe não me disse aonde ia? Por que não me deu adeus, beijo, nada? Por que ela me deixou aqui sozinha?
No dia seguinte, retorna à pergunta habitual: Quando a mamãe vai voltar?

Aquela mãe nunca voltou.

A mãe que sabia todos os caminhos nunca voltou.

A filha não a esquece. Como poderia, se a vida inteira tem caminhado ao seu lado na rua clara de sol, passo a passo com a silhueta sem carnes, com a evocação do vulto esbelto, elegante, altaneiro, a vida inteira assombrada pela convivência íntima com o enigma, com a ausência gigantesca que entretanto misteriosamente ainda é capaz de lhe indicar caminhos?

--------------------------------------------------------

* Escrevi este texto há alguns anos. Neste dia das mães de 2013 publico-o aqui, em homengem a Jacinta Passos, minha mãe. A saudade que sinto dela não passa, é saudade do que foi e saudade do que poderia ter sido.

Foto: Jacinta Passos e sua filha Janaína, fevereiro de 1948.