26.7.11

Guerreiro Ramos escreveu sobre Jacinta Passos



O pesquisador e professor Gilfrancisco Santos, baiano radicado em Aracaju, Sergipe, autor, entre outros, de Jacinta Passos: a busca da poesia (Aracaju: Coleção GFS, 2007), localizou o texto abaixo, de 1940, escrito pelo sociólogo Alberto Guerreiro Ramos sobre a poesia de Jacinta Passos. Este texto vem acrescentar-se aos da “Fortuna Crítica” inserida no livro Jacinta Passos, Coração Militante, de Janaína Amado. Agradecemos muito ao prof. Gilfrancisco pela generosidade em disponibilizar o resultado de sua pesquisa.

Esta resenha crítica de Guerreiro Ramos refere-se à primeira fase poética de Jacinta, que corresponde aos poemas religiosos e intimistas publicados em seu primeiro livro, Momentos de poesia, de 1942. Mais tarde, Jacinta abandonaria a religião e assumiria uma poesia militante, preocupada com a transformação do mundo real, posição que transpareceu já em seu segundo livro, Canção da partida, de 1945.

Esta resenha  pertence também à fase inicial do pensamento de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), quando, ainda radicado na Bahia, praticava sobretudo o jornalismo e a crítica literária, ambos dentro do escopo católico, bastante diverso do da sociologia e da política que mais tarde, radicado no Rio de Janeiro e nos EUA, passaria a praticar, tornando-se um dos mais proeminentes sociólogos e pensadores brasileiros do seu tempo.

Esta resenha foi originalmente publicada na revista Cadernos da hora presente, de São Paulo, que circulou de maio de 1939 a agosto de 1940, sob a direção de Tasso da Silveira. A revista tinha como objetivos publicar textos de intelectuais importantes (brasileiros e estrangeiros) e de fazer propaganda das idéias integralistas. Segundo Alberto da Costa e Silva (Revista de História da Biblioteca Nacional, Outubro de 2010, p. 31), nos números da Cadernos da hora presente “colaboraram não só integralistas e escritores que deles estiveram próximos em algum momento [...], mas também autores que não os acompanhavam em suas ideias políticas, como Abgar Renault, Alphonsus de Guimarães Filho, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade e Orígenes Lessa.” Jacinta Passos, que foi católica mas nunca integralista, pertenceu a este último grupo de autores.


Jacinta Passos

“Jacinta Passos é uma personalidade forte. É uma vocação real de poeta. Sua poesia é uma poesia de salvação, de diálogo com Deus.

Jacinta Passos é da família espiritual dos contemplativos. Alma predestinada, não conheceu as tremendas realidades, a atração dos abismos. Sua poesia é um diálogo, entre sua alma e Deus. Sem dúvida, é luta. Mas luta onde não há ranger de dentes, onde não há dilaceramentos de entranhas. Há, nela, apenas, um laivo de nostalgia do paraíso perdido, do estado cerúleo. Não há dessas descontinuidades trágicas e sangrentas que encontramos nos dolorosos, em um S. Agostinho.

Jacinta Passos é inimiga do feio e do baixo. Por temperamento, ela tem a droiture de l´esprit. Seu espírito é direito. É desses temperamentos que não podem estar no meio termo. Ou são santos ou demônios. O aspecto noturno da existência a estarrece. Não gosta da noite que confunde os contornos e os imprecisa e os dilui. Tudo, nela, é claro, como uma paisagem dos trópicos. E sua experiência de Deus é, se se pode falar assim, uma experiência intelectual. Seus problemas inquietantes são os problemas da fé, de aceitar ou recusar Deus. Uma vez imersa na contemplação, aí fica e permanece, em absoluto abandono. Não precisa do conforto humano. Ao contrário, sua paixão arroja-a nos braços do Consolador Invisível. Poesia teológica, esta. Poesia absolutamente em Jesus.

Não é na terra que espera o complemento de sua imagem. Sua poesia está despida de toda nostalgia do amor puramente humano. Ela tem o gosto da solidão, de se bastar a si mesma com Deus.

Tais temperamentos não deixam de ser trágicos. Neles é que se processam as lutas mais terríveis porque, constantemente, estão entre os extremos: Deus e o Diabo. São altivos, eis o termo. Esta altivez, porém, não está livre do perigo de tornar-se um orgulho espiritual, pior do que o da carne. Daí o terrível drama ontológico das almas deste quilate.

Há — diz Newman — duas sortes de santos: a dos que se perdem completamente na vida divina e que, malgrado sua carne e seu sangue, não têm nenhum contato com a natureza humana, e a dos que, mesmo santos, não ficam, por isso, menos homens, mas compreendem o coração humano, podem aproximar-se da alma dos outros e, ao mesmo tempo em que são firmes no caminho da castidade e da paz, podem, com a imaginação, seguir os múltiplos caminhos da paixão e da vingança...

Jacinta Passos é da linhagem dos primeiros.

Jacinta Passos é uma alma difícil. Dir-se-ia claudeliana. Um espírito duro como um penhasco e, ao mesmo tempo, para falar ao gosto de Maritain, um coração doce, efetivamente, mas uma doçura sui-generis, totalmente dirigida para o sobrenatural. O mundo a “desencanta”. Aquele gosto de isolar-se, de solidão com o Cristo é uma forma do “horror à realidade dura e fria”, aos “atritos ásperos da vida”.

No exterior, só as coisas simples a comovem: um crepúsculo na manhã de sol, a música do mar...

Espírito aristocrata e nobre, o seu olhar se dirige reto para a Divina Face, em cuja contemplação se abisma e se abraça...

Os poemas que vão ser lidos apresentam Jacintas Passos como um valor autêntico da poesia brasileira.”

Guerreiro Ramos



(in: revista Cadernos da Hora Presente, São Paulo, 1940, série I, pgs. 149-150. Segue-se uma “Antologia” de Jacinta Passos, até a pg. 155, contendo os seguintes poemas, reunidos em 1942 no seu livro Momentos de poesia: “Manhã de Sol”, “Contrição”, “Consagração”, “Comunhão”, “Maria”, “Vida morta” e “Agonia do horto” )

* Imagem: o jovem Guerreiro Ramos, em idade próxima à que tinha quando escreveu a resenha crítica sobre os primeiros poemas de Jacinta Passos.

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