29.10.10

¨Coração militante¨ no Umbigo do Sonho

A escritora Adelaide Amorim escreveu a respeito de Jacinta Passos, coração militante, no seu ótimo blog Umbigo do Sonho:

Coração resgatado

Fico imaginando o que significou para a historiadora Janaína Amado a pesquisa, organização e preparação da história de sua própria mãe, cuja obra ameaçava se perder. Num volume de 574 páginas, Janaína registrou o que ela escreveu em vida – seus quatro livros publicados, obras esparsas, textos de vários gêneros, manuscritos em cadernos (dos quais muitos não foi possivel recuperar) e os textos jornalísticos.

Além da obra escrita, o livro traz a biografia detalhada da militante Jacinta, cujo texto, uma narrativa preparada com carinho e seriedade, foi enriquecido por inúmeros depoimentos de parentes, amigos, correligionários e tanta gente que teve contato com ela. Descreve ainda as dificuldades e o sofrimento da poeta e jornalista, de quem ela diz, na apresentação da obra:

“Pagou um preço altíssimo por derrubar tantas barreiras, na contramão da vida, na construção do caminho duro de seus ideais. Afirmou-se como mulher e intelectual, mas sua existência foi muito difícil, marcada por rupturas, fortes desilusões, crises psicológicas. Foi excluída, perseguida, presa, internada em sanatórios.”

Tais dificuldades, que terminaram por afastá-la da mãe ainda bem cedo, na infância, não impediram que sua filha preservasse, com cuidado e carinho, a memória e o trabalho dessa mulher singular, que literalmente deu a vida por uma causa.

Janaína coligiu ainda a importante fortuna crítica referente ao trabalho de Jacinta, textos assinados por intelectuais de importância em sua época, como Antônio Cândido, José Paulo Paes, Sérgio Milliet e muitos outros, assim como textos mais recentes, preparados especialmente para figurar no livro.

Quero agradecer a Janaína a dádiva de conhecer esse livro, uma edição bem cuidada, perfeita e belíssima, não só pelo magnífico conteúdo e pelo trabalho gráfico de alta qualidade, como pelo carinho com que foi preparado. Um livro que testemunha o que podem o amor e a dedicação, e agora brilha aqui em minha estante. Obrigada mesmo, Janaína, também pela delicadeza do presente e pela alegria que me deu.










12.10.10

Entrevista na rádio Senado sobre Jacinta Passos



O programa Autores e livros, comandado na Rádio Senado pela escritora e professora Margarida Patriota, traz uma entrevista com Janaína Amado, acerca da trajetória de Jacinta Passos e da construção do livro sobre a poeta baiana.
Clique aqui para ouvir a entrevista. 

10.10.10

Eliane F.C. Lima escreve sobre Jacinta Passos


"A poeta sobre a qual comentarei hoje, Jacinta Passos (Recôncavo baiano - 1914-1973), era uma mulher excepcional, no sentido mais literal da palavra, pois já a partir de 1939, ano do início da Segunda Guerra Mundial, apesar de haver recebido forte formação religiosa, comum na época, começou a ter intensa militância política, lutando por questões relevantes sociais, como a paz mundial, contra o fascismo, a opressão das mulheres e das minorias exploradas, de uma forma geral. Um de seus textos mostra, poeticamente, esse mundo interior que possuía.

Canção da liberdade

Eu sou planta sem raiz
que o vento arrancou do chão,
já não quero o que já quis,
livre, livre o coração,
vou partir para outras terras,
nada mais eu quero ter,
só o gosto de viver.

Nada eu tenho neste mundo,
sozinha!
Eu só tenho a vida minha.

(trecho do poema in Canção da partida)

Professora por formação, no novo caminho que escolhera, acaba se relacionando com intelectuais comunistas, como o escritor Jorge Amado, com cujo irmão, James Amado, se casaria mais tarde. Sua filha Janaína Amado é fruto desse casamento.
Em 1945, já está oficialmente ligada ao Partido Comunista Brasileiro, onde permanece até morrer.
Muda-se depois – 1951 –, com sua nova família para São Paulo e, em seguida, para o Rio de Janeiro.
No final desse mesmo ano, um fato marca sua vida e a separa do marido e da filha: após crise nervosa e de se ver internada em clínica psiquiátrica, recebe o diagnóstico de esquizofrenia, tendo seu tratamento, compatível com o que se acreditava na ocasião, lhe proporcionado grande sofrimento.
Voltando para Salvador, só, embora mantenha relacionando ocasional com a filha, vai residir com os pais, mas continua sua atuação política e social em comunidades pobres, como em uma colônia de pescadores de Aracaju, onde vivia ela mesma em extrema pobreza.
Continua sua atuação mesmo após o golpe militar de 1964, o que lhe vale, em 1965, a prisão, quando escrevia em muros da cidade sua revolta à ditadura. Sua família interfere, alegando seu problema psiquiátrico, e Jacinta é internada numa casa de saúde da cidade, onde fica até sua morte – 1973 –, com apenas cinquenta e oito anos de idade.
Apesar de ter sua vida ligada à de Jorge Amado, não é por esse motivo que se torna poeta, é bom que se deixe claro, pois seu primeiro livro de poesias, Nossos poemas, já sai em 1942, dividido em duas partes: “Monumentos de poesia”, com poemas de Jacinta; “Mundo em agonia”, com poemas de Manoel Caetano Filho, seu irmão. O livro já foi recebido com críticas favoráveis aos dois na imprensa baiana.

Obras
Poemas
Nossos poemas (1942 – Salvador: Editora Bahiana)
Canção da Partida (1945 – São Paulo: Edições Gaveta – edição de apenas duzentos exemplares, assinados pela autora e ilustrados pelo grande artista Lasar Segall, tendo recebido elogios de nomes nacionais como Aníbal Machado, Antonio Cândido, Mário de Andrade, dentre outros).
Poemas políticos (1951 - Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil - poemas inéditos, políticos e líricos, além de uma seleção de poesias anteriores).
A Coluna (1957 - Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho Editor). O volume contém um longo poema épico, de quinze cantos, sobre a Coluna Prestes).

Em 2010, sua filha Janaína Amado, escritora e historiadora, organiza o livro Jacinta Passos, coração militante, lançado, em conjunto, pelas editoras Edufba (da Universidade Federal) e pela Corrupio, reunião da obra completa da escritora, com artigos jornalísticos e inéditos, além da fortuna crítica. Os desenhos de Lasar Segall, do livro Canção da partida, são trazidos de volta. A admiração da filha por Jacinta fica bem patente, não só pela obra publicada, fazendo ressurgir toda a produção da mãe, mas por dois espaços (aqui e aqui– site oficial) na internet a ela dedicados e aos quais agradeço. Foi do primeiro link que partiu a facilitação de minha pesquisa, encaminhada aos diversos outros sites onde se informou sobre a poeta e aos quais estendo meu agradecimento. No segundo, pode-se visitar poemas e prosa da escritora.

Escrevendo Jacinta Passos, em jornais e revistas, um de seus temas, como foi dito, era a denúncia da opressão sofrida pelas mulheres, o que se refletiu até em seus poemas, como os abaixo:

Canção Simples

A flor caída no rio
que a leva para onde quer
sabia disso e caiu,
seu destino é ser mulher.

Mulher que tudo já deu
homem que tudo tomou,
é mulher que se perdeu,
é homem que conquistou.

(Canção da Partida)

Chiquinha

Chiquinha
Chiquinha
tão frágil,
magrinha.
Teu corpo miúdo,
O tempo secou,
As formas redondas,
o tempo gastou.

(...)

Teu corpo cansado
lutou no Egito
as mãos, mãos escravas,
abanaram leques
e teu corpo nu,
teus seios morenos
e teus pés pequenos
dançaram lascivos,
ligeiros, airosos,
deleitando o tédio
de reis ociosos.

Chiquinha,
teu corpo cansado,
foi corpo explorado
na Mesopotâmia,
na Pérsia e Turquia
- haréns de sultão –
foi pária na Índia,
na China e Japão.
Teu corpo explorado
foi mercadoria,
espada e cavalo
e vinho, foi orgia
na Arábia lendária,
de ardência e magia.

(…)

Chiquinha
Chiquinha
durante dez séculos,
teu corpo fechado
nas torres feudais
de imensos castelos
foi corpo arrancado
da terra, da vida,
corpo sem raiz,
feito puro de espirito,
mistério e tabu,
teu corpo adorado
foi corpo explorado.

(Canção da Partida)



Canção da partida

Bernadete é preta
é preta que nem tição.
Bernadete é pobre,
é pobre sem um tostão.

(...)

- Pelo sinal da pobreza!
- Pelo sinal de mulher!
- Pelo sinal!
da nossa cor!
Nós somos gente marcada
- ferro em brasa em boi zebu –
ninguém precisa dizer:
Bernadete, quem és tu?

(Canção da partida)

Abaixo coloco alguns de seus textos do livro Poemas políticos, embora eu deva salientar que a poesia vai muito além de uma questão momentânea. Mas quem sou eu para discutir com a autora o título que ela mesma lhe deu.

1935

Tenso como rede de nervos
pressentindo ah! novembro
de esperança e precipício.
Fruto peco.
Novembro de sangue e de heróis.
Grito de assombro morto na garganta,
soluço seco dor sem nome. Ferido.
De morte ferido. Como um animal ferido. Luta
de entranhas e dentes. Natal.
Sangue. Praia Vermelha.
Sangue.
Sangue. É quase um fio
escorrendo
sangrento
tenaz
por dentro dos cárceres,
nas ilhas
e nos corações que a esperança guardaram.

(Poemas políticos)

Canção atual

Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

Não quero a rosa do tempo aberta
nem o cavalo de nuvem
não quero
as tranças de Julieta.

Este chão já comeu coisa
tanta que eu mesma nem sei,
bicho
pedra
lixo
lume
muita cabeça de rei.

Muita cidade madura
e muito livro da lei.
Quanto deus caiu do céu
tanto riso neste chão,
fala de servo calado
pisado
soluço de multidão.

Coisas de nome trocado
– fome e guerra, amor e medo –

Tanta dor de solidão.

Muito segredo guardado
aqui dentro deste chão.
Coisa até que ninguém viu
ai! tanta ruminação
quanto sangue derramado
vai crescendo deste chão.

Não quero a sina de Deus
nem a que trago na mão.
Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

(Poemas políticos)

Mas devemos nos deliciar também com os poemas líricos de Jacinta, os quais têm a mesma força dos de cunho libertário. Em uma linguagem simples e direta, como foi a ação em sua vida, sem jogos figurativos muito requintados, atinge em todos a poesia que emociona.

Canção do amor livre

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.

Teu corpo.
Relâmpago depois repouso
sem memória, noturno.

(Poemas políticos)

Cantiga de Ninar

Senhora Onda do Mar
vestida de verde com franjas de luar,
ninai meu filhinho fechai seu olhinho
seu soninho velai
que mamãe precisa fazer com papai,
Senhora Onda do Mar,
um planeta novo de neném morar.

Su su su
Quem dorme na lagoa
é sapo-cururu.

(Canção da Partida)

Diálogo na sombra

– Que dissestes, meu bem?
Esse gosto.
Donde será que ele vem?
Corpo mortal.
Águas marinhas.
Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.

– De quem falas amor, do mar ou de mim?

(Canção da Partida)

Fecho a postagem com um poema de Jacinta Passos, que, parecendo antever sua grande ação social e seu final de vida, resume-a, assim, em 1942. Doente e com problemas de saúde, o que ficou da escritora foi mesmo sua essência lírica, o que atravessou o túnel do tempo e a traz de volta. Não é o que se diz dela, dados ligados à história do país, de um “indivíduo”, afinal, o que a marca mais fortemente, mas a força e verdade de um sujeito poético

Eu serei Poesia

A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma.
Quando eu não for mais um indivíduo,
eu serei poesia
Quando nada mais existir ente mim e todos os seres,
os seres mais humildes do universo,
eu serei poesia.
Meu nome não importa.
Eu não serei eu, eu serei nós,
serei poesia permanente,
poesia sem fronteiras."

Eliane F.C. Lima, publicado em Literatura em vida 2, 10/10/2010